Publico esse texto do meu tio João Gilberto Lucas Coelho, parabenizando meu primo Tuia pelo seu doutorado.
Com a inveja saudável e esperando que o feito faça eu tomar vergonha na cara, esse texto conta brevemente uma história linda de parte da minha família. O Artur merece, assim como merecem o Tio João e a Tia Albane. Assim como merecem todos os Coelhos e Pfeifers.
"Na sexta-feira, 28 de março de 2008, no Instituto de Física da UFRGS, quando a banca aprovou a tese de doutorado em microeletrônica “Isolação Elétrica por Implantação Iônica em GaAs e AIGaAs” do aluno Artur Vicente Pfeifer Coelho, um ciclo se completou.
Olho para os lados, até onde meu conhecimento genealógico alcança, não conseguindo encontrar outro parente Coelho “doutor”. É um feito para esta família que no século XIX fora proprietária significativa de terras em Quaraí, mas que amanheceu o vigésimo século em situação muito modesta. E é nesta condição dura e desafiadora que cresceu o Vicente, pelo que se conta órfão de mãe ainda cedo e de pai já quase adulto. Foi peão, tropeiro, capataz, administrador e, já pela metade do século quando nasci, proprietário de uns duzentos hectares onde praticou a pecuária daqueles tempos e fez chácara e pomar. Tinha rudimentos de instrução, uma bela letra e facilidade com os números nas quatro operações básicas. Foi ele quem decidiu que haveria de fazer um “doutor” na descendência. Mas, doutor naquele tempo era médico e ele sonhou que seu primeiro filho varão haveria de sê-lo e até se mudou para a cidade, a fim de facilitar a educação do menino. Decepcionei-o, primeiro com a vontade infantil de ir para o seminário, depois com a escolha do direito; advogado era sim doutor, mas não era a mesma coisa que médico! Ou seja, sem ter tido chance de estudar naqueles tempos, Vicente decidiu que aos filhos não faltaria tal oportunidade e seu orgulho teria sido ver um médico entre eles.
E a Celina, então! Faz parte do folclore da família que lá pela segunda década do século XX o pai dela, Sabino, decidiu ensinar aos filhos homens leitura, escrita e as tais quatro operações matemáticas. E se aplicou a tal. Nestas aulas domésticas a Celina, única filha, ficava escondida atrás da porta e assim aprendeu a ler e escrever e a fazer as contas, driblando a discriminação paterna. Foi essa mulher tão decidida que me ensinou a rimar e antes de ler ou escrever, ainda morando no campo, fiz minha primeira estrofe, uma quadrinha em homenagem à Rama Negra, uma égua “pecherona” que, para surpresa de todos, ganhava carreiras em cancha reta no Garupá. Foi a pioneira das dezenas de poesias que escreveria até a juventude... Foi ela também que me indicou os caminhos da curiosidade científica, mostrando de cada borboleta em que vegetal colocava ovos, quanto tempo para nascerem as lagartas e assim por diante. No ginásio, fiz um trabalho de ciências a respeito que me rendeu até ser recebido num almoço do Rotary Clube da cidade para expor a bem sucedida experiência (ou observação científica)...
Pois é. Vicente e Celina tiveram vida suficiente para ver um filho deputado federal, mas não chegaram a conviver com um verdadeiro doutor na família.
Foram as coisas do coração, o enlevo e a paixão, que levaram um filho do Vicente e da Celina a unir-se a Albanise e a uma genética privilegiada. Os Pfeifer acumulam lauréis e destaque científico e cultural, além de incluírem em sua árvore genealógica diversos médicos, os tão sonhados “doutores” para o Vicente.... E ele logo se apegou à nora, encantado (e ainda era filha de médico!).
Na prole resultante desta união o gosto pelas coisas do intelecto, das artes e das ciências, sempre esteve presente. Quantos casais possuem no seu ninho quatro mestrados?
Sempre senti bem disfarçado orgulho disto. Não mais cabe aos pais sugerirem aos filhos este ou aquele caminho. Cada qual escolheu o seu e escondi sempre o sorriso satisfeito, a emoção e uma certa vaidade, para que jamais pressionasse ou induzisse. Não existiu qualquer indução a esta ou aquela profissão. Sequer compareço às defesas de dissertações, para que a presença não atrapalhe ou misture sentimentos de gerações a momento tão especial e particular.
Mas, me sentia endividado com o velho Vicente que há tantos anos nos deixou. Não atendi a qualquer dos seus anseios. Quando no fim da vida me disse, triste, que achava que os filhos venderiam sua propriedade em Quarai, desconversei... faleceu, pouco depois, e nós, herdeiros, vendemos o campo dele! O presente que encomendou à sua adorada afilhada (“Quando puderes, compra uma chácara para que ela tome gosto pela vida do campo...”), não foi e, pelo jeito, nunca será entregue! Em todo o caso, sem qualquer interferência minha, a afilhada revelou-se hábil cavaleira e entusiasta do convívio com animais, o que certamente o faria sorrir orgulhoso.
E agora, o Artur Vicente, que ele nem chegou a ver sem fraldas, cumpre a destinação que o velho de vida rude e sonhos intelectuais para a descendência tanto desejou: é um verdadeiro doutor! Talvez, onde se encontre, nem entenda bem ainda o que é ser físico, o que é microeletrônica e, muito menos, o complexo título da tese de doutorado e as estafantes experiências que levaram a este. Mas, não deixará passar o orgulho quando lhe contarem que tem um neto doutor de verdade! Certamente, a Celina, com sua paixão pela leitura e a assinatura de tudo o que era revista informativa dos tempos em que a ciência deslanchava, irá saber explicar bem o que é ser físico e vai contar que a família não tem apenas um doutor, tem um cientista!
Que alegria que o Dr. Arthur e a Dona Alba estão aí, presentes e ativos, para verem o primeiro neto de sua linhagem Pfeifer alcançar o doutorado!
Mas, se alguém vir um vulto de outro mundo cavalgando pelas noites do Garupá, enrolado num poncho e resmungando alguma coisa solitariamente, não se preocupe: o Vicente é assim mesmo, cada vez que a gente alcançava um sucesso na escola, quando ele ia elogiar parecia estar xingando porque a emoção de homem rude mais parece resmungo! Será o Vicente sim, cavalgando, balbuciando orgulho e emoção!
Não torci para que o Artur Vicente emendasse – como o fez – o doutorado ao recém concluído mestrado. Pelo contrário, temi que sua saúde sofresse consequências por tamanho desafio, ainda mais em área tão complexa e exaustiva. Decisão adotada, respeitei e apoiei. Agora que tudo passou, o ciclo se completou, é hora de revelar o significado desta façanha: do lado Coelho dessa filiação trata-se de feito ímpar, o primeiro a alcançar o doutorado que eu saiba. É o culminar de um processo que iniciou nas primeiras décadas do século XX quando o Vicente tropeando pelos rincões deste Rio Grande, talvez maldizendo suas condições de vida, decidiu que um seu descendente iria ser “doutor”. Ou quando a Celina, atrás da porta, escolheu aprender a ler, escrever e fazer contas contra a vontade paterna de que só os varões precisavam deste tipo de instrução. Foi decisão e determinação deles. Nós, até sem noção exata da missão, apenas a cumprimos! Festejemos, então!
João Gilberto "
Confesso que terminei o texto chorando.
sábado, 29 de março de 2008
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